O texto abaixo, de autoria do Prof. Roberto Leher (ex-reitor da UFRJ), apresenta importantes reflexões sobre o debate de retomada das atividades universitárias durante a pandemia.
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Universidades públicas, aulas remotas e os desafios da
ameaça neofascista no Brasil
Notas para ações táticas emergenciais
Texto Roberto Leher *
As universidades públicas estão diante de pesados dilemas
que podem definir, de modo duradouro, o seu futuro. O governo, aproveitando a
pandemia, está efetivando ações destrutivas para, no dizer do antiministro do
Meio Ambiente, ‘passar a boiada’[1] e, o antiministro da Economia após ter
caracterizar os servidores como parasitas, em meio a risos, - ao modo de Saló
de Pasolini, uma das obras que expressam, de modo mais profundo, a perversidade
inerente ao fascismo - jactou-se por ‘colocar uma granada no bolso do
inimigo”[2], ou seja dos servidores. O MEC, orientado pelo negacionismo, retoma
o Future-se[3] e o CNPq e a CAPES estão sendo desconstituídos. Nenhuma ação
construtiva está em curso para melhorar a infraestrutura das instituições à
situação da pandemia.
Existe a possibilidade concreta de que não seja possível
retomar as aulas regulares no prazo de até um ano, possivelmente mais. A saída
que vem sendo aventada por algumas administrações universitárias é a retomada
da normalidade por meio de ensino remoto, medida que responderia, ao mesmo
tempo, aos reclamos do MEC incorporados pelo CNE, do ministro da educação e,
difusamente, aos anseios das comunidades universitárias.
O presente texto dialoga diretamente com o texto do Coletivo
de Estudos em Marxismo e Educação – COLEMARX/ Faculdade de Educação da UFRJ[4].
Sistematiza indicações que não corroboram essa alternativa, argumenta,
distintamente, que a tentativa de instituir uma falsa normalidade irá legitimar
a perda de centralidade dos problemas de infraestrutura que precisam ser
enfrentados para possibilitar que a universidade pública brasileira possa
assegurar as condições para o retorno futuro. O falso normal comprometerá de
modo severo e, para muitos, irremediável, a incipiente democratização do acesso
e da permanência de estudantes provenientes das frações mais exploradas e
expropriadas da classe trabalhadora.
Sem nova infraestrutura, retorno incerto
Em grande parte das instituições, a expansão das duas
últimas décadas foi realizada a partir de adequações de espaços preexistentes,
via-de-regra, precários e exauridos. Não são poucas as salas de aula e espaços
de trabalho acadêmico e administrativo pequenos, sem ventilação adequada, com
escassos lavatórios para as mãos. A despeito da heterogeneidade das
edificações, dificilmente a totalidade das instalações universitárias seria
aprovada pelos protocolos das autoridades de saúde.
A exigência de distanciamento entre os estudantes nas salas
de aula – norma básica da OMS – exigiria turmas de aproximadamente 15
estudantes, o que está longe de ser uma realidade. Em todos os protocolos em
circulação na União Europeia, China e outros países que já estão
operacionalizando o retorno das escolas e universidades, a questão da
harmonização dos espaços das instituições com ‘protocolos sanitários’ assume
importância axial para planejar o retorno.
Diferente da orientação ultraneoliberal, a adequação exigirá
novos servidores para que seja possível reduzir o número de estudantes por
turma. Tudo isso somente se realizará se houver planificação. Entretanto, como
o MEC é negacionista, essa agenda não será proposta. Como o ministério
responsável pelos assuntos educacionais não irá agir por sua própria vontade,
as instituições, sindicatos, movimentos estudantis, sociedades científicas
etc., terão de assumir a tarefa de elaborar, imediatamente, projetos gerais com
objetivos, metas, estimativa de custos e, com a assessoria parlamentar,
apresentar proposições ao Congresso Nacional, objetivando a definição de
recursos. As diretrizes para esses projetos de adaptação das instituições terão
de incluir as áreas administrativas, laboratórios, bibliotecas, restaurantes,
moradia estudantil, transporte etc.
No fulcro do planejamento, o cronograma de adequações terá
de ser cuidadosamente estabelecido, devendo conjugar o calendário recomendado
pela OMS/OPAS, secretarias de saúde, Fiocruz, sociedades científicas
pertinentes e pelas próprias instituições e o plano de melhoria da
infraestrutura com fontes de recursos, normas de repasses e de licitação que
caracterizem a emergencialidade, o que poderia ser feito em diálogo com os
órgãos de controle para que a celeridade necessária possa ser garantida.
A analogia grosseira de que a paralisação das aulas em
virtude da pandemia guarda paralelo com greves longas e, portanto, que o
problema se resume ao ajuste de calendários, somente contribui para tornar
ainda mais opaco o congelamento do protagonismo em prol da construção de
condições para que as aulas possam ser retomadas quando as condições da
pandemia permitirem.
Referenciado na defesa da vida dos estudantes, servidores e
comunidades não é possível, a priori, definir o horizonte temporal para indicar
o retorno às atividades acadêmicas nos espaços universitários. E é esse
intervalo de tempo que está engendrando toda sorte de propostas que,
desconsiderando as demandas estudantis e dos servidores, ocultam proposições
que buscam redefinir a natureza dos processos de ensino e aprendizagem nas
universidades, introduzindo, a pretexto da pandemia, estratégias da inexistente
modalidade semipresencial, tal como pretende o ministro Weintraub e as
corporações ávidas para ocupar os nichos de negócios lastreados pelo fundo
público.
A ideologia das aulas remotas
São muitas as motivações para as aulas remotas: a mais nobre
delas é o desejo de reencontrar os estudantes, estudar juntos, saber como
passam, compartilhar as intensas atividades de debates, eventos culturais e
artísticos que circulam e, certamente, a responsabilidade de realizar reflexões
sobre a perigosa conjuntura brasileira. No presente texto argumento que não é
verdade que o dilema esteja resumido à disjuntiva: a) o retorno por meio de
aulas remotas aos cursos regulares, restabelecendo o período acadêmico como se
o país não vivesse a mais trágica e brutal crise sistêmica desde meados do
século XX e b) o imobilismo diante da situação. O problema é mais complexo e,
conforme discutido na última seção do presente texto, outras alternativas são
possíveis.
Para precisar a discussão, por aula remota denomino o
processo de restabelecimento das disciplinas, por meio de tecnologias de
informação, nos marcos da grade curricular que estava prevista para o ano
acadêmico de 2020. Entretanto, nos dias de hoje, essa alternativa pressupõe, a
priori, deixar para trás justamente os estudantes das frações mais exploradas e
expropriadas que ingressaram via cota racial ou de escola pública, e que são
merecedores das melhores esperanças de ampliar a democracia no país. Não menos
relevante, milhares de servidores teriam dificuldade de atuar nas aulas
remotas, em virtude da impossibilidade de transformar o espaço doméstico em
oficinas de trabalho e de harmonizar a cotidianidade transtornada pela pandemia
com as atividades letivas virtuais. Esses problemas são especialmente severos
para as estudantes e as professoras e para os professores substitutos e demais
contratados por tempo determinado. Por hora, deixemos em suspenso os aspectos
pedagógicos – decisivos e cruciais – das aulas remotas.
É necessário realçar que não se trata apenas de problemas de
acesso à internet por meio de banda larga, o que já é um imenso obstáculo para
uma enorme parcela de estudantes, problema que é mais grave em estados do Norte
e Nordeste, mas que é sumamente grave nas periferias dos grandes centros
urbanos (PNAD, 2017), mas, principalmente, das condições de vida dos
estudantes. As universidades corretamente defendem fortemente a quarentena e,
por isso, não podem se furtar de examinar as condições de moradia, trabalho,
renda e estado psicológico das e dos estudantes que se deterioraram, ainda
mais, a partir da pandemia.
Se examinarmos as condições de vida de nossos estudantes,
considerando como aproximação razoável, os indicadores da pesquisa do
FONAPRACE/ ANDIFES[5], concluiremos que, grosso modo, apenas os segmentos das
classes médias de melhor poder econômico e, generalizadamente, das classes
médias altas e dos ricos, poderão ter acesso a ambientes de estudos condizentes
com as atividades denominadas de ensino remoto.
Embora as aulas remotas emergenciais não possam ser
configuradas como EaD é inevitável associar os termos. Em primeiro lugar, caso
não seja possível implementar em curto prazo o plano de reformas nos espaços
das universidades, institutos etc., uma hipótese plausível, o problema das
aulas remotas se estenderá por um bom tempo; ademais, não cabe ingenuidade
aqui: essa será a saída induzida pelo governo Bolsonaro como o “novo normal”,
mas na modalidade EaD. Este intento será insistentemente defendido pelas
corporações que oferecem as tais plataformas de ensino, lideradas pelas maiores
do setor, e por meio de prepostos vinculados ao capital que estarão solidários
com o aprofundamento do ultraneoliberalismo, concebido como a única via de
superação da crise pós-pandemia.
Por isso, é preciso colocar à lume a realidade da EaD no
Brasil. Ao contrário do que vem sendo apregoado (a área educacional é
conservadora, resiste a ingressar no século XXI e nas tecnologias digitais), o
país está entre os que mais possuem estudantes nessa modalidade, processo
liderado, largamente, pelas corporações mais agressivas do mercado. Em 2008,
esta modalidade correspondia a 12,5% das matrículas e 20% dos novos
ingressantes; em 2018, alcançou 25% das matrículas e 40% dos novos
ingressantes. Cabe o registro: grande parte em curso de formação de
professoras/es. A grande maioria dessa expansão foi efetivada pelas grandes
corporações que, efetivamente, possuem o monopólio da EaD no país. A EaD, como
modalidade de ensino regulamentada pelo Decreto no 9.057, de 25 de maio de
2017, deveria requerer planejamento cuidadoso, específico, deliberado,
associado a atividades presenciais sistemáticas. Não é o que se verifica nas
corporações. No caso das instituições que têm compromisso de assegurar
processos formativos integrais, a exigência de momentos presenciais acaba
afastando aqueles estudantes que, por não terem meios de vivenciar as
atividades presenciais desses cursos, avolumam a fileira dos evadidos.
Os ultraneoliberais, por atuarem nos negócios financeiros,
sabem que a elevada lucratividade desse segmento decorre da superexploração dos
professores e de estratégias de ensino que pressupõem as mais brutais formas de
expropriação do conhecimento dos docentes: é a hipertrofia do capital fixo para
sufocar o lugar do trabalho vivo, potencialmente inventivo. Pouco importa que
os cursos assim ofertados possuem elevadíssima evasão dos estudantes, pois,
para os negócios, são estudantes sem rostos. Como o objetivo é o lucro,
enquanto houver circulação de ‘clientes’ os negócios se realizam. Não pode
surpreender o fato de que algo como 47% dos cursos são considerados
insatisfatórios pela rebaixadíssima avaliação do MEC, sempre muito generosa com
as corporações.
As plataformas de ensino utilizadas pelas corporações
educacionais, em geral, estão sob controle das cinco grandes corporações de
Tecnologia da Informação (Amazon, Microsoft, Facebook, Apple, Alphabet/ Google)
que detém o fundamental do mercado mundial. Todas elas estão estruturadas a
partir de “certas” concepções pedagógicas. Todas, igualmente, possuem objetivos
estratégicos na criação do mercado mundial de ensino superior, um objetivo
acalentado desde a criação do Acordo Geral de Comércio de Serviços da OMC, em
1995. Não é possível ignorar, também, o uso dos dados que circulam por suas
plataformas pelas corporações, por meio da mineração dos dados (revolução dos
algoritmos) posteriormente aplicado em campanhas publicitárias e político
eleitorais, a exemplo das efetivadas por Cambridge Analityca[6]. A indagação
sobre qual o real negócio do Facebook, por exemplo, segue atual: não seria a
captação e o tratamento de grande quantidade de dados para fins políticos e
econômicos?
Finalmente, e não menos importante, é preciso colocar em
relevo o fato de que os dispositivos tecnológicos possuem intencionalidade, são
desenvolvidos com objetivos e, por isso, as corporações de TI são referências
na flexibilização dos direitos trabalhistas. As novas modalidades de trabalho
inseridas nas plataformas tecnológicas como Uber indicam o caminho a seguir. E
na educação não é diferente. A adesão ao fetiche tecnológico, nesse sentido,
não deixa de ser uma servidão voluntária; é a luta pela sobrevivência,
principalmente dos jovens, que faz mover essas engrenagens fetichizadas.
O Brasil talvez seja o país em que melhor é possível avaliar
a experiência concreta de EaD e o quadro é desolador. A lógica do processo
conduz a hipercompetição das corporações pelo mercado educacional, rebaixando
custos, operando dumping, precarizando o trabalho dos docentes, muitos
relexicalizados como colaboradores, tutores, monitores e noções afins. Para
dimensionar até onde a mercantilização pode ir, examinar o caso da Laureate é
ilustrativo[7]. Esta corporação que atua em todo continente americano, no
Brasil chega a atribuir a cada docente que atua nos cursos a distância a
correção de milhares de provas e, não satisfeita com a hiperexploração do
trabalho, avançam na demissão de docentes que atuam no núcleo de EaD para
substitui-los por robôs que, doravante, programados por meio de inteligência
artificial (IA), corrigiriam os trabalhos e provas dos estudantes.
O trabalho remoto é indissociável da contrarreforma
trabalhista de 2017, e está associado às terceirizações, à pejotização, ao
trabalho intermitente e outras modalidades de precarização selvagem do
trabalho. O insulamento domiciliar quebra toda solidariedade de classe, e, mais
amplamente, a sociabilidade dos espaços compartilhados de trabalho que engendra
relações sociais com potencial humanizador.
O tema do trabalho remoto chegou às universidades em virtude
da pandemia e está em confronto, ao menos parcial, com o negacionismo que
pretende impor, contra as normas das autoridades da saúde, o fim da quarentena.
Nesse sentido, deve ser reivindicado como direito dos servidores em prol da
vida, desde que sua regulamentação observe o que deveria ser óbvio: trata-se de
trabalho remoto em virtude da existência de uma pandemia e, nesse sentido, as
especificações não deveriam ser centradas nos indivíduos, mas nos planos de
trabalho das unidades, setores, laboratórios e da própria instituição.
No caso da docência e, mais amplamente, das atividades de
ensino, pesquisa e extensão o trabalho remoto não pode ser confundido com a
EaD: é distinto, ocorrendo em situações administrativas, orientações, defesas,
estudos específicos fora do local de trabalho. A transmutação do trabalho
remoto em ensino remoto, associado à EaD, é uma impropriedade. Inexiste a
modalidade ensino remoto, o que é feito em termos de ensino remoto é a
modalidade EaD que, como assinalado, possui normas e diretrizes próprias e,
sobretudo, deveria estar inserido em estratégias pedagógicas especificamente
desenvolvidas para a referida modalidade de ensino. Não há como transladar o
planejamento de cursos presenciais em cursos baseados em trabalho remoto dos
docentes.
Os colegiados das instituições, ouvido os movimentos
estudantis e dos servidores, assim como as entidades sindicais e acadêmicas,
terão de examinar com vagar o que pode e em que condições deveria ser
realizado, como bancas, relatórios, projetos, monografias de conclusão de
cursos, sempre considerando a perspectiva da universalidade. Será crucial,
ainda, que os conselhos superiores interpelem os órgãos de fomento, sobretudo
CAPES, CNPq, FINEP etc., objetivando a repactuação dos calendários e,
sobretudo, a preservação do caráter republicano e comprometido com a liberdade
de cátedra dessas agências.
No caso das aulas, como salientado, além dos problemas
propriamente pedagógicos, não seria uma medida correta, pois seria esdrúxulo
que a universidade, em sua institucionalidade balizada pela Constituição,
deliberasse por uma alternativa que seguramente não será universal, enredando a
universidade em novos e mais graves problemas.
Os processos de ensino e aprendizagem na universidade
pública pressupõem um ambiente de aprendizado e de ensino, nas salas de aula,
laboratórios, grupos de pesquisa, na experiência cotidiana das interações entre
os estudantes, docentes, técnicos. Os cursos foram assim pensados. A ampliação
das atividades remotas para a esfera do ensino, referenciada no new management
– é seguro que esse é o intento do MEC que já ampliou a possibilidade de que
40% das disciplinas possam ser ofertadas a distância, como prática a ser
seguida no futuro – corrói o ethos acadêmico e a formação complexa dos
estudantes, rebaixando o lugar das públicas no ensino superior do país, e,
pior, institucionaliza o apartheid educacional.
Os defensores do new management educacional reagem às
críticas sem enfrentar o que é substantivo: a má pedagogia, a péssima formação
e, principalmente, a postura “E daí?” sub-repticiamente assumida diante da
segregação de enorme parcela dos estudantes. Ocultando o principal, retrucam
que, uma vez que a volta às aulas não pode ser imediata (embora não priorizem a
construção de condições para o regresso acima indicadas), as aulas remotas são
a única alternativa possível, pois os servidores não podem deixar de cumprir
metas de desempenho e os estudantes precisam concluir seus cursos. Como
apontado anteriormente, é preciso examinar alternativas ao que o texto considera
uma falsa disjuntiva: retomada do período acadêmico por meio de aulas remotas
versus o imobilismo.
O que pode ser feito para retomar as atividades
universitárias durante a pandemia?
O dilema acima referido precisa ser enfrentado: no caso de
prolongamento por muitos meses das restrições para a reabertura das
universidades é evidente que a instituição não pode deixar de criar condições
para renuclear seus estudantes, inserindo-os na vida universitária, isso é
imprescindível para a instituição e para a vida dos estudantes. Vale reiterar:
a interação com os estudantes é um anseio dos docentes e técnicos e
administrativos. É seguro que também os estudantes estão desejosos de retomar
contato com a universidade. A formação intelectual dos estudantes é uma
exigência magnificada pela combinação da crise política, econômica e da
pandemia. Seria decepcionante que durante esse período a universidade
renunciasse ao seu papel formador.
Aos aspectos formativos, é preciso agregar o fato de que o
país vive dias perigosos em que cresce assustadoramente o risco de que a
ideologia neofascista se converta, cada vez mais, em governo neofascista. O
renucleamento dos estudantes se justifica, também, pelo fato de que a
universidade é, nessas situações, uma das primeiras instituições afetadas pela
violência que caracteriza as experiências fascistas. Não surpreende, como
assinalado, que nesses dias perigosos, em 28 de maio de 2020, o governo
Bolsonaro e seu peculiar ministro da Educação tenham apresentado nova versão do
destrutivo Future-se.
Para que os setores democráticos não se vejam enredados em
uma insustentável posição defensiva ou, pior, se percebam constrangidos a
aceitar a segregação implícita no ensino remoto, é preciso trabalhar o tema da
reaglutinação dos estudantes e da organização de atividades que expressem a
vitalidade das instituições universitárias no momento mais difícil desde o
início do pós-II Guerra, considerando os problemas objetivos das condições de
vida já referidos acima e, ao mesmo tempo, os desafios acadêmicos e
pedagógicos. Como enfrentar esse dilema?
As universidades, institucionalmente, terão de assumir
protagonismo real na organização de condições para reaglutinar seus estudantes.
Como assinalado, no contexto de avanço de projetos autocráticos e de cariz
neofascista, é necessário que os estudantes estejam próximos às suas
universidades, em defesa da democracia, da educação pública e envolvidos em
processos formativos originais.
A pandemia abre caminho para o fundamentalismo e para
disposições de pensamento referenciadas no ‘darwinismo social’. A crise
econômica, embora anterior à pandemia, é por esta muito potencializada e os
neofascistas disputam a imagem da crise, como se esta decorresse das medidas de
isolamento social adotadas pelos países e pelos estados e municípios. As
universidades, nesse cenário, estão no rol das primeiras instituições a serem
atacadas para consolidar a autocracia neofascista que está em preparação. Ademais,
os estudantes não deveriam estar longe de seus companheiros de curso, de seus
centros acadêmicos e diretórios estudantis. Se a fórmula simplista e escapista
do ensino remoto não responde às exigências da realidade, o que resta é a
resignação e a esperança desencarnada de que, em breve, as coisas melhorarão?
A esquerda
socialista, e os setores comprometidos com a democracia, precisam definir ações
para atuar no tempo histórico e forjar alternativas. Uma agenda democrática não
pode deixar de atuar:
a) no sentido de universalizar o acesso gratuito e universal
a todos estudantes das instituições públicas acesso à rede web com banda larga
ou equivalente e de garantir os meios tecnológicos para a interação criativa
dos estudantes. Existem recursos previstos para tal fim, por meio do Fundo de
Democratização dos Serviços de Telecomunicações instituído pela Lei n.
9.998/2000. As universidades e institutos, em conjunto com as prefeituras
municipais, poderiam participar da ampliação do acesso de redes comunitárias,
associadas à Rede Nacional de Pesquisa e iniciativas afins, fortalecendo o
caráter público do acesso à banda larga no país;
b) emergencialmente, em prol da renda mínima, no âmbito da
assistência social, para todos estudantes que provêm de famílias de baixa
renda, pelo menos no valor atualmente praticado (R$ 600,00), objetivando
assegurar melhoria nas condições de vida;
c) na defesa de que as instituições universitárias e de
pesquisa públicas elaborarem ambientes virtuais próprios, livres do controle
das corporações, de modo a assegurar a autonomia universitária e a soberania
dos suportes pedagógicos indispensáveis para enfrentar as condições de
isolamento social no contexto da pandemia.
Cumpridas as três condições, todas elas necessárias, é
possível desenvolver políticas para a referida reaglutinação dos estudantes com
suas instituições.
O exemplo da UFBa é relevante. Esta instituição realizou,
nos dez últimos dias de maio de 2020, em plena pandemia, um Congresso para 38
mil membros de sua comunidade com mais de 600 debates, apresentação de
trabalhos, grupos de estudos, cursos livres, exposições artísticas, tudo isso
sem perder a interpelação da conjuntura: a abertura do Congresso se deu com
três mesas: uma sobre o fascismo, outra sobre a pandemia, na ótica de uma
instituição de pesquisa pública e, finalmente, uma terceira sobre a educação no
contexto atual. Mais claro impossível!
Nacionalmente, é possível elaborar uma cartografia com
muitas atividades científicas, culturais, tecnológicas, tanto organizadas pelas
instituições, unidades, laboratórios, como os que investigam o coronavírus,
sociedades científicas, conselhos profissionais, povos indígenas, sindicatos,
movimentos sociais, compondo plataformas comuns com atividades auto organizadas
diversas que possam interpelar a perigosa e complexa conjuntura, promovendo
encontros, desencontros, convergências táticas, dilemas estratégicos. Na
tradição do pensamento crítico, experiências das universidades populares, com
Gramsci e Mariátegui, são inspirações a serem consideradas.
Tempos excepcionais exigem medidas excepcionais. Nos dias de
sofrimento e dor da pandemia, a universidade não pode deixar de se perceber
interpelada pelos problemas que afligem a humanidade. Essa é a tradição das
universidades populares que poderia inspirar os planos acadêmicos nesses dias
difíceis. Cada universidade poderia criar normas de validação de créditos pelas
atividades que, a rigor, poderiam ter, muitas delas, alcance nacional. No gozo
da autonomia universitária, é possível atribuir créditos de atividades
complementares e extensão universitária, possibilitando, desse modo, que os
estudantes avancem em seus processos formativos e na inserção universitária.
Temas complexos terão se ser discutidos, como a conclusão dos cursos por parte
dos estudantes que estão muito perto de concluí-los, discussão que deveria ser
empreendida nacionalmente, por meio de fóruns com a Andifes, UNE, Andes-SN e
demais entidades pertinentes.
Essas são, em linhas gerais, proposições para a nossa
reflexão que terá de ser célere. Urge construir uma agenda comum com amplitude
para forjar a necessária unidade de ação em defesa da democracia, dos direitos
sociais, da educação pública e gratuita, referenciada nos princípios do Art.
207 da CF.
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* Texto publicado na Carta Maior
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[1] Ministro do Meio Ambiente defende passar 'a boiada' e
'mudar' regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19, G1,
22/05/2020, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml
[2] Suspensão de reajuste de servidores é 'granada no bolso
do inimigo', diz Guedes em reunião, G1, 22/05/2020,
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/suspensao-de-reajuste-de-servidores-e-granada-no-bolso-do-inimigo-diz-guedes-em-reuniao.ghtml
[3] GIOLO, J., LEHER, R. e SUISSARDI, V. Future-se: ataque à
autonomia das instituições federais de ensino superior e sua sujeição ao
mercado”, São Carlos, SP: Diagrama Editorial, 2020, Acesso livre em:
www.diagramaeditorial.com.br/editora/future-se.
[4] COLEMARX. Universidades públicas e aulas remotas: nenhum
estudante pode ser excluído, junho de 2020, no prelo.
http://www.colemarx.com.br/
[5] V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural
dos (as) Graduandos (as) das IFES – 2018, Observatório do Fórum Nacional de
Pró-Reitores de Assuntos Estudantis – FONAPRACE/ Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior -ANDIFES,
http://www.andifes.org.br/wp-content/uploads/2019/05/V-Pesquisa-do-Perfil-Socioecon%C3%B4mico-dos-Estudantes-de-Gradua%C3%A7%C3%A3o-das-Universidades-Federais-1.pdf
[6] Facebook vendeu informações de dados pessoais de cerca
50 milhões de utilizadores a uma empresa britânica de recolha e análise de
dados, a Cambridge Analytica que contava com a participação do ideólogo da
guerra cultural empreendida pela extrema direita Steve Bannon, utilizando os
dados adquiridos em campanhas políticas como a saída do Reino Unido da União Europeia,
a eleição de Trump à Casa Branca, também na Nigéria e no Quênia. Karla
Pequenino. A vida debaixo do microscópio das grandes empresas. Público,
25/03/18,
https://www.publico.pt/2018/03/25/tecnologia/noticia/a-vida-debaixo-do-microscopio-das-grandes-empresas-1807936,
acesso em 30 de abril de 20.
[7]Thiago Domenici. Após uso de robôs, Laureate agora demite
professores de EAD. Agência Pública, 13/05/20,
https://apublica.org/2020/05/apos-uso-de-robos-laureate-agora-demite-professores-de-ead/?mc_cid=f0188b56be&mc_eid=405aa0050d,
acesso em 30/05/20.
